Cores opacas

Dizia-se que sua principal inspiração vinha dos sonhos. Imaginava-os como uma parte da realidade que nos escapava da visão e aparecia, a partir do subconsciente, em desejos e medos fantasiados. A necessidade de evitar a realidade, afinal, era crucial à todos. E a ele, principalmente. Pois escrevia não sobre o seu cotidiano. E certamente nunca escreveria. Suas letras e entrelinhas eram feitas como um subterfúgio da realidade, pois se por um momento a encarasse, a queda seria certa e fatal. Necessitava do irreal por um instante. Era o único ar que respirava com prazer.

E certamente este fato era o bastante para deixar claro que a idéia de já não ter a capacidade de alcançar o irreal o deixaria a beira de um abismo. E o quanto temia que isto acontecesse tornou-se realidade. A realidade que tanto temia e evitava agora o encurralava. Fora numa manhã insípida e nublada do qual o céu assumia um tom leitoso e cinzento do qual ele, desperto de uma noite sem sonhos – aqueles que tanto o inspiravam –, sentara-se e fitara o papel em branco com certo receio. Nunca o enxergara daquela maneira, tão vazio e real. Tão cru e sem vida. Poucas letras havia delineado quando percebera estar também cru e sem vida. Não havia um turbilhão de palavras em sua mente. Aquelas eram forçadas como seu universo irreal. Mas até mesmo aquele universo agora o faltava. Estava sob a placidez da realidade.

E o quanto sentira-se angustiado ao ver que tampouco sabia que rumo a suas palavras haviam tomado. Via apenas a escuridão – e não, não era a escuridão. Era aquele universo sem tantas cores ou movimentos, sem espirais, cogumelos ou monstros. Era quase escuro comparado aos seus sonhos, não era? Sentia-se um estranho no lugar que o pertencia. Um estranho no ninho. E ali ele estava, as mãos posicionadas sob a folha em branco onde cinco ou seis palavras pousavam. Aquelas palavras cinzentas. Aquelas palavras insípidas. Eram apenas palavras. E ele nunca usava palavras. Usava sonhos.

E ali estava ele, agora deitado sobre o sofá esperando que seus sonhos o invadissem. Que aquelas nuances surpreendentes o trouxessem um mundo tão advento quanto o País das maravilhas. Mas, pela primeira vez, novamente apenas a escuridão o permeava, sem sons ou sem luz. Apenas aquela realidade crua, sem letras ou entrelinhas. A escuridão se chamava realidade. E ao abrir os olhos, ela permanecia, tão impiedosa e recusando-se a ir embora. Talvez devesse compreender. A evitava há muito tempo, deixava-a contida o bastante para uma quase não-existência. E agora chegara um ponto sem retorno do qual a realidade, como uma represa, quebrava os muros que construíra entre mundos e sonhos.

E, agora, fitava a folha novamente. As cinco palavras escritas em letras redondas e inseguras. “A escuridão adornou-me. Salve-me disto.” Com incerteza inerente a alguém que levara uma queda brusca e machucara-se o bastante, pousara a tinta no papel. Haviam outros tons, havia outro ar. Havia, afinal, outra realidade. Uma sem tantas cores, uma sem espirais, cogumelos ou monstros. Talvez devesse aprender a se adequar a outros mundos. Mesmo que, em seu âmago, soubesse que aquele não lhe pertencia.

2 comentários:

Unknown disse...

Wow! Não sei nem o que comentar, sério. Achei muito foda a relação que fez com as cores do mundo real e dos sonhos.

Maíra F. disse...

Duas últimas frases: ouch. Sério, se eu já tinha me identificado com o texto antes, agora (lendo inteiro) mais ainda. Espirais, cogumelos, cores, Wonderland. <3 Que eles nunca me abandonem porque a realidade crua me mataria em 2 segundos, rs.

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