Ela nasceu, já diria o médico. De alguma forma, porém, ela começara a se questionar quanto a realidade do fato. É claro, todos nascem. É tão óbvio quanto o que vem posteriormente. Mas ela, de alguma forma, não nascera. Permanecera prematura em algum ponto antes disto. Pois afinal, ninguém – e certamente isto a perturbava – começava, subitamente, a se questionar a sensação de ter vida.
Fora assim. Desde o começo, enquanto os outros se afastavam do abismo como peixes fora d’água, ela rastejava para ele com receio e curiosidade juvenis. Não por ter vontade – não, não totalmente. Mais era curiosidade. Obsessão. Juvenil, sim. Se de alguma forma questionasse-se como tudo começara, via que estava cercada de evidências, como um criminoso sem escape.
Quando nascera – ou surgira, por assim dizer, já que tal termo era impróprio a si - sua mãe logo fora adornada pelas faces da doença e logo estivera sob os braços impacientes da morte. Porque, de alguma forma, perante a doença, ela nunca fora consumida por total. Vivera com as engrenagens arrastadas e logo levara, junto a si, a garota. E a culpa por tal fato fora inteiramente da garota, que com o surgimento perante as luzes da vida, trouxera a morte como um cordão umbilical.
Fora uma obrigação decretada que cuidasse de sua mãe a ponto de abandonar toda a sua semi-existência. Via de mão única a qual fora colocada com impiedade. Não que realmente se importasse. Vivera com as páginas em branco daqueles livros que decerto, em todas as letras e entrelinhas, revelavam outras realidades e universos. Aqueles tão sombrios e soturnos que não eram apenas letras em um papel em branco. Eram uma parte de si mesma sutilmente revelada. E afinal, do que importava agora vida se ela não tinha aqueles tons tão surpreendentes? A não-realidade era o que realmente exigia: Incógnitas brilhantes; o inexplicável, surreal, curioso.
E dentre aquelas suas obsessões, desequilíbrios, questionamentos e exigências, permanecia a sua mãe desfalecendo no passar dos dias. Se alguma vez tivera a beleza a preencher-lhe os olhos, ela se fora. Agora tampouco levantava-se do leito. Apenas exigia e exigia que, de uma forma ou outra, não fosse empurrada precipício a baixo pela escuridão da morte.
A garota perguntava-se porque. O fim da vida - ou a ela, talvez o início dela - era cheio de mistérios e incógnitas. Quem, afinal, a temia? Na verdade, ela a temia. Todos a temiam: Era um tabu. A diferença é que ela não apenas a temia, mas a queria fortemente. Porque a vida era aquilo. Clara e estável – quem era ela para falar sobre a vida, afinal? – A morte não. Morte era cheia de mistérios tão suntuosos que permaneciam ali, calados. Mistérios eram motivos de receio, certamente.
E então colocara-se a refletir. Por que sua mãe tanto evitava a morte? Por que todos, afinal, tanto a evitavam? A vida já a expulsava. Então por que, de alguma forma, ela tanto a abraçava? E assim era, afinal. A vida era uma bela dama egoísta que ao ver imperfeições em suas vestes as empurrava para as mãos sedentas da morte. Largava a todos que a questionavam ou que, igualmente, a abandonassem. Uma bela dama que nunca fora indulgente. E então, pela primeira vez, decidira: Já não iria empurrar ou abarrotar sua mãe por falsas engrenagens. Se o ar que se respira não é real, logo se esvai.
Sentara-se, tranqüila, a frente do leito de sua mãe. Ali ela estava, reclamando. Segurava-se com seus dedos já pálidos no precipício. Sabia que a situação, a si, seria uma vantagem. Veria a morte revelando-se diante de seus olhos sem realmente enfrentar-lhe.
E aquilo era de alguma forma incrível. Nunca tivera espaço para vida se, desde o principio, apenas um caminho se mostrava. Era claro: Não fora feita para viver; Era como uma doença, uma leve imperfeição. Era a vida lhe expulsar. Sabia que não havia caminhado direito sob o caminho traçado e agora era impulsionada as adversidades da morte. Afinal, segurava-se também ao precipício com dedos longos e pálidos, empurrando os outros para observar o efeito, como uma pedra jogada ao poço para medir a profundidade. Mas sabia que morte era um abismo.
Pelo resto da noite, ali permanecera a observar sua mãe. Já passara do horário dos remédios e logo ela fenecia, seus olhos rolando sem que nem mesmo percebesse estar morrendo. A garota observara minuciosamente enquanto a morte puxava lentamente a mulher a sua frente. Não havia tanta diferença, certamente. Ela sempre estivera morta. Faltava-lhe apenas um passo.
E a garota sabia: A ela também. Logo depois de observar sem tanto interesse a sua mãe ser entregada ao verdadeiro leito, caminhara despreocupadamente até a varanda. Ali estava o abismo, na forma de uma rua ladrilhada.
Via a morte, com todas as suas incógnitas e pontos de interrogação a puxando. Sempre a evitara e sempre a desejara, mas agora sabia: A pertencia inevitavelmente. Gostaria das novas cores e novos sabores. Da resposta. Do mistério. E movida por tais desejos, como uma criança aprendendo a andar em sua bicicleta, dali lançara-se. Uma ave em vôo prematuro. Sentia-se viva novamente. Mas antes das cores, dos sabores e dos mistérios por qual tanto estava sedenta, a escuridão a consumira.
Assinar:
Postar comentários (Atom)


3 comentários:
Adorei esse, assim como adoro todos os seus contos. É uma mistúria de surreal com real que poucos conseguem fazer, dude.
Amei muito esse conto no dia que eu li. Não entendi no inicio, mas depois ficou bem claro. RS. Vou continuar acompanhando o blog e comentando sempre que puder. :D
Já tinha lido e já disse, mas repito: esse conto é foda. Concordo totalmente com o comentário do Alê, by the way. :) e, sua fucking bitch, mudou o template e nem contou.
Postar um comentário