Justine,


Hoje acordei ao som da tua voz. Um sussurro quase despretensioso e sem forma, apenas o grunhido suave e grotesco atravessando a brisa como um doce aroma. Não tentei segurar-lhe, ali, enquanto abria os olhos ainda pensando que você estivesse ao meu lado. Os lençóis estavam intocados, querida, assim como toda a desordem que você inerentemente trazia era inexistente. Apenas o som da tua voz coexistindo em lembranças abafadas de minha mente.

Quando você partiu, eu disse que o destino nos uniria em mesma linha novamente. Devo dizer, porém, que me rendo a tuas crenças de não acreditar naquilo que é abstrato como tintas em quadro, puros sentimentos injustificados e incompreendido. Eu não tenho paciência para o destino, Justine. Mas não pense que sinto sua falta: Eu não te quero aqui novamente. Você, por trás desse rosto pequeno, é egoísmo e malícia. Um sorriso oblíquo talvez pudesse me prender pelo curto espaço de tempo – e talvez o necessário para que, como um vírus, você se instalasse em mim. A destruição lenta e – sei que somos os únicos a compreender isto, querida – agradável.

Pois eu te queria mas também desejava afastar-te fortemente. Não, nada disso começou quando você ainda se escondia sobre eufemismos ou atos delicados capazes de prender alguém ingênuo a tua falsa aura. Posso até mesmo ouvir tua voz, clarividente, dizendo que nunca se escondia, apenas não era necessário se mostrar. Eu concordaria se, por trás de tantas tintas, vestes e palavras você não fosse uma contradição do que parecia ser.

Nós nunca fomos formais. Tudo aconteceu enquanto lentamente nos encontrávamos todas as noites, dividindo experiências e sabores, até isto se tornar uma simbiose assustadora – de minha parte, necessariamente. Você me sugava e fazia com que minhas noites se tornassem cada vez mais escuras e sangrentas sem ti. Fazia com que eu gradualmente me tornasse um monstro moldado pela solidão. Como, Justine, como? Antes não existia solidão, e agora, Justine, como existia? Este é o problema. Depois que viestes, avassaladora como a rainha insana que era, fez com que noites silenciosas  e tranqüilas se tornassem solidão que corroia.

Você era um problema e eu não via isso. Desde o inicio, eu me enxergava como o culpado dessa dependência – reflexo deturpado. Me via já como obsessivo enquanto estava sedento por ti ao meu lado, entre cartas – irônico, não acha? – e telefonemas. Parece até mesmo paixão clichê e desprezível, mas não. Era mais do que isso. Era um alerta vermelho. Eu demorei a ver que desde o início você era a egoísta, a possessiva, o perigo. Você meticulosamente construía tudo apenas para não implorar por carências que, em seu ponto de vista, deveriam lhe pertencer.

E o quão impiedoso era isso. Você me envenenou como a serpente que era, camuflada, aproximando-se cada vez mais enquanto eu via estar sendo enganado de alguma forma, sem saber qual, apenas ainda atraído fortemente por tuas madeixas ruivas e atração inerente.

É, Justine, você era tão defeituosa que sabia exatamente como transformar isso em perfeição. A perfeição que prendia as pessoas, deixava-as receosas em te perder. Você era um narcótico ameaçador e nocivo, querida. E mesmo assim eu não quis te afastar, preferia estar sendo preso e a cada vez mais estagnado por teu efeito estarrecedor de serpente do que te empurrar. Quase uma síndrome de Estocolmo culposa. De qualquer maneira, devo assumir ter sido um erro desde o inicio não fazer uma questão crucial: Se já de inicio era nociva em excesso, o que se tornava ao ser machucada?

A resposta é a conseqüência de nosso destino, Justine. Quando por fim estávamos juntos em mesmo espaço e você se tornava cada vez mais o meu único fôlego – e idealizado, devo dizer – te via de forma galante. Pois era assim: Todas as noites tu vinha sorrateira e começava a perguntar-me e questionar-me. E eu falava e desabafava inconscientemente sobre meu dia, meus sentimentos e me mostrava como o quebra-cabeça que era. Começamos esta terapia donde tu era a terapeuta, sempre charmosa e ouvindo com tal atenção inabalável que comecei a questionar: Por que, afinal? Por quê? Ninguém, devo dizer, tem o dever de ouvir ao outro. Não da forma com que tu ouvia – e mais do que isso, exigia ouvir.

Percebi que você pouco falava. Percebi, com o passar do tempo, que eu já fora desmistificado dentre todos os meus labirintos e tu permanecia intacta, cheia de mistérios e enigmas que me prendiam. Senti-me vulnerável – e com razão. Agora você parecia me conhecer perigosamente, prendendo-me cada vez mais em minhas próprias fraquezas e palavras. Tudo se tornou tão mais grave do que já era ao mesmo tempo que você se tornou mais perniciosa do que aparentava. Mais bestial. No fim, você também tinha medo de me perder, todavia de modo mais profundo e defeituoso. Assim você era: Defeituosa, incorrigível e egoísta.

E de repente, toda a minha fascinação se converteu em ódio por ti. Pois você lentamente mostrava que eu também era cheio de defeitos, encurralando-me com todos os segredos que eu havia te confiado quando você me exigia a falar e desabafar e mostrar meus pensamentos. Externá-los de tal modo. Você me colocou numa cadeia de valores por mera insegurança de que eu partisse – mas eu não tinha mais medo, querida. Não de você. E fora assim, simples, que eu apenas proferira lentamente minhas palavras de redenção: “Eu estou partindo”.

Talvez, se eu soubesse o quão monstruosa você ainda podia se tornar depois de tal declaração, houvesse permanecido naquela cadeia indulgente e viciosa. Mas eu não me arrependo totalmente: Ao menos vi aquela sua face excessiva e problemática que escondia dentre mil máscaras. Fora, porém, com certa dor. Você explodira impiedosamente sob mil maldições após as palavras de que eu estava te deixando. Sua face se tornara púrpura, seus cabelos mais desgrenhados do que pareciam e seus olhos inchados por aquelas lágrimas de desespero. Você quebrou vasos e quadros, deixou escorrer como uma represa aquelas palavras que me condenavam e lentamente me revelavam e me expunham de forma vergonhosa. E eu via que em parte eu era também culpado: Revelei-lhe verdades que, no fim, você queria conhecer apenas para me prender – e num golpe final, me destruir.

O irônico disso tudo, minha querida? É que eu nunca parti. Fiquei de pé sobre teus destroços enquanto você, tomada pela loucura, apenas batera a porta em fúria estarrecedora e foi levada pela brisa como o fogo alardeador que era. Você não me destruiu inteiramente, mas decerto deixou em mim um espaço vazio. Pois eu sempre fora pequeno e sem forma e então você surgiu, intensa e perigosa como era, e ocupou-me e sugou-me impiedosamente. E partiu tão brutalmente quanto chegara.

Espero que, dentre tantos os danos que ainda fará, não me encontre novamente. Pois sei que no instante em que abrir estes lábios rosados, conseguirá se instaurar em mim como o vírus nocivo que é. Novamente. 

Eu não sinto sua falta, Justine.



 

Um comentário:

Alexandre disse...

Adorei.Tipo, MUITO. MESMO MESMO. BABO nessas coisas de destruição interna e desprezo. <3 muito foda, dude. De verdade.

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