Encanto quebrado

Éramos dois.

Desde o início, éramos dois. O amor nasce de atos incompreensíveis como um olhar, podendo ser efêmero e vão, mas em seu momento tão delicado e vulnerável a um único trinque. E naquela noite o trinque fora feito não por um golpe certeiro e súbito de dor, mas por limites apagados. Havíamos nos amado por um único instante. O último dia mágico se acabara. Nosso amor, nascido de um pueril olhar na noite agitada da cidade, se esvaía junto a ele. Poderíamos apenas nos afastar e nos despedir do encanto quebrado ou permanecer ali dentre os lençóis brancos esperando a maldição.

E como éramos ambos adeptos aquela ácida consciência de que um dia tudo acabava, sabíamos que aquele dia - marcado mentalmente no calendário - havia chegado. Dali, éramos permitidos a voltar nos limites e ignorar tudo o que acontecera - as noites e o amor súbito. Há muito tempo nossa existência conjunta não era a mesma, a magia que começara acabara e faltava-nos a coragem de encarar o inevitável. Estávamos presos a cadeia de valores, dentre as grades abertas que agora esperavam apenas nossa saída. Estávamos com medo do que viria a seguir, pois nos odiávamos. Tudo o que existia, depois de todo aquele tempo, era o ódio. O amor fora momentâneo, mas intenso em seu momento para nos selar como eternos amantes. Amantes corrompidos ao ódio. Desejávamos o pior para nós mesmos. A morte, sim, que nos afastasse sem que justificativas ou situações embaraçosas surgissem e nos levassem ao ápice, que uma vez quebrado, representaria um fim inimaginável. Nós estávamos sendo clarividentes por todo aquele tempo, guerreando com nós mesmos e tentando enfrentar barreiras invisíveis, mas nunca poderíamos dizer aquelas palavras, simples palavras. Eu estou partindo.

Mas sob aqueles dias de pura tortura que tínhamos de suportar nossas presenças nos sufocando gradualmente, o limite fora apagado. O último dia de mágica chegado e a maldição escondia-se sorrateira dentre olhares despretensiosos. Sabíamos que dali para frente um passo deveria ser dado, e estávamos esperando ansiosamente quem iria primeiro enfrentar a verdade. Sentados, silenciosos, nos fitando dentre os sons e as cores da cidade, aquela loucura gradual surgia à cada vez mais com a certeza de que nenhum de nós dois queimaria o orgulho. Era um jogo com conseqüências tão doces.

E aquele era o primeiro estágio de nossa tragédia: A loucura. Apenas o primeiro. E era quase inacreditável ter a certeza de que haviam sido minutos, horas, dias e meses nos suportando e esperando o limite acabar. Poderíamos apenas ter escapado no inicio, ignorado aquele cândido amor que se convertera ao ódio. Aquele sentimento-paradoxo. Eu poderia facilmente afirmar, em outras palavras, que havíamos enjoado de nossas insuportáveis presenças confinadas em um único espaço, mas que uma série de fatores incompreensíveis nos impedia de nos livrar daquilo.

Todavia existem os limites, e desses não podemos duvidar. Pois afinal, eram os limites que quebravam tudo que um dia pudera existir e apenas nos determinava e destruía o nosso medo. Estávamos cegos pela raiva e pelo ódio - nossos limites estavam rasgados - e por isso aquela guerra que fora abafada sob lençóis de silêncio por tanto tempo eclodia quebrando fronteiras. A nossa destruição começara, lenta e doce. Ela se levantara, seus olhos brilhando pela ira, seu corpo quase curvado por tanta cólera existente em suas veias, e tudo o que eu presenciava era um reflexo fiel a tudo o que eu sentia.

Ela fora rápida ao posicionar suas mãos leves ao meu pescoço, apertando-o com força imensurável ao som de Beethoven. E eu sentia o asfixio, engasgava-me com o ar pífio debatendo-me e repelindo-a. E então, com mesma força, meu punho fechado havia atingido seu rosto delicado, fazendo o filet de sangue cortar o ar. E repetidas vezes eu fazia aquilo, com o prazer da raiva, vendo seu rosto transformar-se lentamente num mero borrão, suas mãos pequenas tentando se defender, gritando e xingando inutilmente. E mais força, lembrando-me do quanto sua presença me reprimia, esmagando-a contra a parede, os cabelos louros manchados pelo sangue.

Eu quase esquecera, porém, que o ódio dentro dela era tão maior ou igual ao meu. Sua força e seu ar não se esvairiam tão rápido, movida pela retaliação similar a minha, com toda sua força flexionando os pequenos braços em repetidos golpes frenéticos. E então afastei-me, manchado por seu sangue, gargalhando de nossa situação decadente. Éramos tão ridículos. E ela, agora, estava desgrenhada, ensangüentada, frenética. Um desejo assassino e absurdo naqueles olhos de boneca. E tão rápida quanto a brisa, arrancara o abajur com fúria e lançara em minha direção.

Fora o necessário para que eu entendesse o quanto sua insanidade extrapolava limites naquele instante. E afinal, eu era tolo de já não ter percebido isto. Gostaria de vê-la sofrer mais, já que minha vantagem naquele instante era gritante. O último dia de mágica encerrando-se com uma maldição. Segurei seu corpo frenético, enquanto o grito rasgava sua garganta. Não nos importávamos com ouvintes ou testemunhas. A escadaria estava vazia, preenchida apenas pelos sons da cidade. A pele rasgada, a dor, o sangue. Os gritos. Ao que poderia ser a simples saída, convertera-se àquele poético aniquilamento. E então eu a empurrara como sempre desejara, vendo-a tropeçar em seus próprios pés rolando os degraus inertemente. Sentia a vitória em meus pulmões, a cada pulsar de meu peito e resfolegar. E gostaria de mais. Gostaria que sua forma se esvaísse. Gostaria que fosse um mero espectro sanguinolento e sem vida. E, mesmo assim, aquele desejo tão cruel nunca passaria.

E desci, seguindo a trilha de sangue e observando-a em pé no hall, um sorriso ensangüentado adornando a boca rasgada. Ela não desistiria, pois isto estava em suas regras e nas minhas. Não desistiríamos. A existência de um seria como a sentença a existência do outro. Estaríamos eternamente amaldiçoados se existíssemos em mesma dimensão. Não deveríamos desistir e não desistiríamos. E então ela recuara, ainda com aquele esgar em seu rosto, adentrando a rua movimentada e atraindo aqueles olhares espantados. Sumira dentre os transeuntes como um fantasma, escapando de minhas mãos sedentas por destruição. E eu estava correndo, sem ar, tentando-a avistar dentre a multidão. E o que pensavam, aqueles outros, com os olhos espantados nos fitando? Amantes desiludidos, sim. Mas éramos mais do que isso. Estávamos fora de entendimento, fora de qualquer suposição. Estávamos fora de razão, presos a um ciclo.

Meu fôlego estava escasso, as intempéries daquela cidade movimentada sufocando-me. Esta era sua estratégia. Eu seria dilacerado sem um toque. Mas, sob meu azar, a cortina de sorte sobreveio num instante. Avistei-a, aquele fantasma ao canto oculto pela cortina de escuridão, um beco escuro adentrando a parede. E, para meu deleite, esgueirado como um demônio na escuridão, observei sua morte. Seus suspiros e gemidos de dor, sua tosse quase senil... Estava acabado. Ou ao menos, naquele momento, estaria, pois seu final seria dado com um deleite imensurável e feito por minhas mãos sedentas por sentir seu sangue cálido. Aproximei-me com passos lentos e um sorriso de triunfo, vendo-a afastar-se lentamente e rindo com gosto ao perceber o beco sem saída da mesma. Fora tudo tão fácil. Absurdamente e surrealmente fácil.

Num instante que não pude contabilizar, enquanto minhas mãos se direcionavam com prazer ao seu pescoço alvo, fui impedido por uma dor latejante, e agora eu estava sobre o chão, debatendo-me e gritando como um fraco. A silhueta dela a minha frente, que ria como a dissimulada que era, a corda de aço do qual atingira-me em suas mãos. Eu deveria cogitar um truque escondido sob aqueles olhos falsamente cândidos, mas havia sido inocente e confiante o bastante para, mais uma vez, confiar nela. E, sem reação ou força, permaneci parado fitando-a, esperando por um impetuo de piedade inexistente.

E então o golpe atingiu minha face consecutivas vezes, dentre meus gritos e arfares, meu corpo sendo cortado pela fina corda de metal sem piedade. Eu sabia que aquele era apenas o inicio de sua satisfação, agora atingindo-me com força inacreditável com seus punhos. Naquele momento não existia medir forças, pois nossa força, dependente de quem éramos, baseava-se ao ódio. Como uma possessão. E rasgávamos-nos sem piedade, dilacerávamos e nos aniquilávamos. Uma destruição cheia de poesia.

Segurei seus punhos com dificuldade, sentindo meu corpo arder por inteiro e um grito involuntário escapar dentre meus lábios. E ela ria perante meu sofrimento, agora encurralada. Ria e debatia-se com puro deleite. O que naquele momento me surpreendia era o quanto a situação, se vista por um ponto de vista superficial, era inesperada. Estávamos tão cegos por amor por um tempo tão grande que tudo tornara-se distante e o existente fora apenas aquela cândida ternura. Mas, se nos atrevêssemos a olhar para baixo em um único momento, tudo iria desmoronar. As nuvens sumiriam e seriamos levados ao inferno por enjoarmos um do outro. Por mágica não era tão trágico se não olhássemos para baixo, porém, o encanto acabara. O relógio tiquetaqueara a meia-noite.

Empurrei seu corpo com violência em direção a parede, colocando-me a sua frente parado, tentando não deixar transparecer minha máscara transbordante de derrota. Eu quase duvidava do sentimento em meu peito, mas isto seria contraditório já que meu desejo cegava qualquer incerteza. Minha mão havia atingido sua face num som que ricocheteara as paredes do local. Eu percebera que até mesmo tocá-la era como uma maldição para mim, apesar de ao mesmo tempo proporcionar-me o prazer por vê-la tão destruída quanto eu...

E ela, passionalmente, retribuíra o gesto. O seu mero toque trazia-me maior ira, se isto era possível no momento, e então com o punho fechado e com força imensurável eu atingira seu rosto, comprimindo sua cabeça loura contra a parede. E a esmurrara consecutivas vezes, recebendo seus chutes e golpes certeiros de fúria. Estávamos, por fim, terminando aquela mutilação. Nossas forças se esvaiam a cada golpe dado, estávamos fracos e a vida já se esvaia lentamente... Iríamos desistir?

Eu não sabia quanto tempo ainda havíamos continuado daquela maneira, entre tapas e golpes, nos mutilando, nos aniquilando sem piedade e descontando tudo o que havíamos guardado por tanto tempo. Sabia apenas que a manhã havia chegado e com ela nossa desistência.



Segui através do cândido dia, ignorando os olhares dos poucos transeuntes que caminhavam fitando-me com receio e preocupação. Minha roupa estava vermelha pelo sangue, meu corpo cortado e minha face desfigurada. Um boneco de trapos. Eles certamente não poderiam imaginar ou supor o que levara-me a tal estado, e mesmo que por um momento pudessem ter conhecimento, nunca entenderiam. Nunca, definitivamente, compreenderiam o incompreensível. Certamente também nunca entenderiam que daquela destruição assustadora renascia uma liberdade que eu almejara por tanto tempo.

Subi os degraus resistindo ao peso de meu corpo que impulsionava-me gradualmente para baixo, apoiando-me e ignorando a tontura gradual. A porta de meu apartamento estava entreaberta, a trilha de sangue da qual eu seguira terminando no carpete. A sensação de horror e compreensão subira-me o peito, aquela vontade selvagem de gritar e soltar todas as maldições existentes. Garota travessa! Então ela voltara, docemente, disposta a dar-me um fim definitivo conhecendo minha fraqueza. Eu deveria saber que aquele jogo - aquele ciclo doentio - não terminaria tão simplesmente. Adentrei o local, agora meus últimos resquícios de força se esvaindo, esperando por quaisquer surpresas e disposto a ceder a elas. Realmente surpreendi-me, mas tal surpresa acompanhada por meu riso de prazer. O corpo dela estava jogado ao assoalho, sem vida, lívida com sua face tão desfigurada quanto a minha e seu corpo decrépito. Com o deleite da vitória - ainda rindo de prazer ao ter consciência de sua derrota - desabei ao seu lado cansado como estava e, tranquilamente, morri. Juntos até o fim como cálidos amantes...

2 comentários:

Maíra F. disse...

Esse é um dos contos mais fodas, não me canso de dizer. E, woooow, I feel good sabendo que eu que te mandei a música que te inspirou pra ele e. *se acha* <3 Anyway, já disse e repito: muito, muito insanamente foda. :*

Scary disse...

Ahh, Má, valeu :DD E, sim, Last day of magic é vida. E valeu mais uma vez. @_@

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