Bonecos de vidro

Mantinham a delicadeza de forma angustiante, os passos felinos e atentos parecendo calcular as palavras com minúcia quase enferma. Bonecos de vidro esculpidos e moldados por mãos alheias, perfurados e consertados, manipulados como delicadas marionetes. Giravam se empurrados sem perder a imutabilidade ou indiferença. E então, sob eles, eu me sentia humilhado e pisoteado. Afinal, diziam-se felizes. Permaneciam com o mesmo detestável e incansável sorriso, curvando a boca com desdém, mantendo-se e construindo imperceptivelmente aquele castelo delicado de eufemismos que eu, ao tentar reproduzir, derrubava. Falhava.Gostaria de os exigir e os exigia. Gritem a verdade nua e crua pois eu sei que esta existe. Seria tão difícil livrar-se desta cautela, desta delicadeza, desta rede de mentiras? Eu não conseguiria ser de vidro.

Talvez a realidade já tenha escapado debaixo de vossos pés há muito tempo. Fantasiaram-se tão bem com o vidro que este tornou-lhes o corpo, o sangue e as palavras. Moldam-se pelos outros. É demais exigir que ao menos uma vez sejam sinceros sem meias-palavras? Que digam tudo em uma cusparada venenosa e sem cautela. Terminem. Não se moldem. Quebrem mesmo que doa. E por algum momento eu me pergunto quando foram sinceros, deixando os eufemismos e a delicadeza se esvair em fúria. O que existe por trás da vidraçaria limpa e alva? Talvez um reflexo repentino do que ainda existe de si. Um reflexo cansado. Em breve restará apenas a angústia para adornar-lhe em braços muito acolhedores.

Sorrisos já não caberão em sua face. Cores e sabores inventados se tornarão desgastados. Bonecos de vidro por trás da vitrine observando o mundo em sua realidade tola e inventada que convence até mesmo a si. Um teatro incansável de agradecimentos vãos. Dor, peso e expiação como figurantes. Uma platéia que com olhos brilhantes observa aquela vida falsa e a reproduz como um ciclo doentio. Nos invade, nos pressiona, nos molda propositalmente. E eu gostaria de quebrá-los, destruir-lhes lentamente até que a voz verdadeira os viesse. A verdade que evitaram. E talvez eu os quebrasse, fazendo-os desmanchar-se em lágrimas que dissipariam aquela superfície de vidro, arriscaria meus dedos mesmo que os cacos me cortassem. Eles dissimulavam aquela vida brilhante, aquela ficção indubitável e para mim sobrava a mesma desgraça visível a todos. Eu não conseguiria ser de vidro.

4 comentários:

Lion. disse...

Um dos textos mas fodas que eu já li. Simples assim.

Scary disse...

AAAH, Flavs, valeu mesmo. Obrigado, obrigado, obrigado! steph/

Alexandre disse...

Adorei o texto. Um dos teus melhores. \o/

Maíra F. disse...

Foda, foda, foda. Ainda mais dps daquilo que a gente falou no msn hahaha. De fato, isso se aplica totalmente (especialmente à pessoa sobre a qual eu falava, haha). Enfim... Maravilhoso, as always. E, wow, tava com saudade de posts aqui, gente. Achei que tu tinha sumido.

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